ROMA FOI CONSTRUÍDA EM UM DIA: como as cidades surgiram
E se eu lhe dissesse que uma cidade foi formada em apenas um único dia? Sabemos que essa afirmação é descartável, pois as cidades levam décadas, até mesmo séculos, para, de fato, serem organizadas em estruturas públicas. No entanto, a “cidade”, para os povos da antiguidade, era instituída de uma maneira totalmente distinta dos aglomerados urbanos em que vivemos. Para entendermos de onde nossa ‘cidade moderna’ se ergueu, precisamos mergulhar séculos no passado e descobrir as origens desse processo tão fascinante que, muito relacionado à prática religiosa, formou as sociedades antigas.
Origens da Religião
“Será o Homem um erro de Deus, ou Deus um erro dos Homens?”
FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
É certo que Nietzsche gera uma provocação significativa com essa frase. Porém, o fato é que as religiões, querendo ou não, estiveram presentes desde os primórdios da humanidade. Em meados da pré-história, surgiram as primeiras manifestações religiosas, baseadas em seres espirituais. Nesse tempo, os primeiros hominídeos guiavam suas práticas a partir de fenômenos da natureza - para eles inexplicáveis -, os quais possuíam atributos místicos. De modo que os espíritos naturais eram determinantes para garantir o bem-estar daqueles povos, os homens aprisionaram essas almas espirituais em objetos sagrados, totens ou talismãs, a fim de preservar o culto àquela força sobrenatural. Com o estabelecimento de uma ponte entre o espiritual e o material, especialmente durante cultos ministrados por Xamãs, a religião primitiva animista (do latim animus, "alma") desenvolveu-se de forma generalizada e desconexa entre os pré-históricos. Nesse contexto, brotava uma semente que iria transformar o culto religioso completamente, de forma a, lentamente, pavimentar nossa sociedade ocidental do mundo de hoje.
Religiões e Famílias
“É a brasa divina que acende nosso fogo; e sem fogo, verdadeiro fogo, nenhum sacrifício é aceitável.”
WILLIAM PENN
Em tempos remotos da antiguidade, os povos indo-europeus passaram a adotar certos costumes culturais-religiosos uniformes, no que tange a alma, o culto aos mortos e o fogo. Sim, o fogo. Durante praticamente a antiguidade inteira, o culto ao fogo esteve presente na sociedade antiga, pois era por meio dele que os mortos poderiam comunicar seus anseios, sentimentos e reações às libações – que eram honras religiosas prestadas aos mortos. O conceito de alma, dos mortos, tomava natureza física no culto ao fogo. Portanto, era comum que os lares antigos mantivessem acesa a chama sagrada. Na sociedade romana antiga, por exemplo, o fogo adquiriu caráter importante o suficiente para ser o formador da palavra “lar” – em grego, Οίκος (óikos); também precursor do termo família: οικογένεια (oikogéneia). O lar, assim, referia-se ao canal de comunicação entre os ‘deuses lares’, que cuidavam de cada domicílio, e os seres de cada família. Em paralelo, é importante notar que a relevância dada ao sepultamento dos mortos, tanto nos seus procedimentos como nas orações post mortem, também contribuem para que acreditemos que os antigos endeusavam as almas dos falecidos. Assim, a hierarquia máxima da espiritualidade se consumava na condição de alma falecida. O culto aos mortos, logo, era a primeira manifestação concreta de um antigo culto aos deuses, o que nos leva a uma conclusão muito interessante.
Entendendo que os deuses antigos eram as almas dos antepassados de cada família e, pelo fogo sagrado, os acessavam, podemos concluir que as primeiras religiões da antiguidade eram familiares, essencialmente domésticas, sendo propagadas pelas gerações. Considerando ainda que cada família possuía seu culto, a diversidade de orações, práticas e doutrinas era imensurável. Ainda estamos distantes do surgimento das cidades antigas. No entanto, entender que as famílias, por meio da religião particular, formavam os primórdios de uma associação humana baseada em uma doutrina comum, não mais somente nas ligações biológicas, é vital para compreender a ‘cidade’. Prova disso era que, na união da família, importava mais a fidelidade ao culto dos deuses lares do que simplesmente uma ligação hereditária. Existem evidências demonstrando que um filho adotivo poderia ser considerado pelo patriarca mais parte da família do que um filho que decidiu mudar de culto ao casar-se com sua esposa. Portanto, a família, naquele contexto, era um grupo de pessoas o qual rogava e participava das celebrações fúnebres, constituindo nitidamente uma associação religiosa. Para entendermos como essa associação pioneira se tornaria um grande aglomerado de pessoas, precisamos percorrer alguns conceitos.
Genos, Fratrias e Tribos
“É preciso de uma tribo para formar o ser humano.”
YUVAL HARARI
Em um processo lento, as famílias passaram a se juntar em genos – em latim, gens -, pois a cadeia parental crescia exponencialmente. A partir das grandes associações familiares, iniciou-se a fusão de crenças entre outras famílias. Durante esse período transitório, uma família não abdicava de seu culto particular, mas, sim, unia-se a outra para a celebração de um culto que fosse comum. Nesse processo, os deuses domésticos começaram a se reunir em cultos sincréticos, misturados, até o ponto em que se formaram grandes uniões familiares. A estas uniões deram-se o nome grego ‘fratrias’ – φρατριας – ou em latim ‘cúria’ – cūria. As fratrias expandiram o conceito de associação religiosa familiar. Para tanto, reuniram deuses e cultos públicos, os quais originaram as primeiras instituições religiosas. Chegamos num momento marcante, pois foi a partir dessas instituições que se procedeu à formação das estruturas públicas da cidade.
Finalmente, a crença em deuses maiores e cultos generalizados ganharam proporções. Logo, fratrias diversas incorporaram-se, dando à luz a uma organização mais complexa de associação religiosa: as tribos. Renunciado o exclusivo culto doméstico, o lar e o fogo tornaram-se atributos religiosos acessórios, uma vez que, nas tribos, havia os altares e templos comuns, não havendo nada que pudesse ser superior àquelas crenças. Simultaneamente, brotava um conceito inédito e particularmente essencial para as cidades antigas: o direito. Da junção das normas, preceitos e práticas religiosas – como a sucessão de bens, o modo de tratar um ao outro, as penalidades por crimes, etc. – nasceu o direito tribal daqueles povos antigos. Assim, por mais absurdo que possa parecer, não só a religião caminhava para a formação das primeiras cidades, como foi ela que estabeleceu os primórdios do direito e da lei.
A partir desse fenômeno, os antigos se aproximavam da constituição das primeiras cidades. Cresciam as tribos e tão logo as mais tenazes e numerosas passaram a determinar os deuses e os costumes ritualísticos de uma região. Daí, a percepção de fratrias e tribos se esgotou, dando espaço, enfim, às cidades antigas.
Cidade Antiga
“A cidade é, por assim dizer, uma igreja; a urbe, um templo; as leis e o direito uma religião; os magistrados, sacerdotes”
FRANÇOIS HARTOG
Não podemos imaginar a formação das cidades antigas do jeito com que são criados os espaços urbanos hoje em dia. Pensamos, muitas vezes, que cidade é o espaço físico construído ao longo de muitos anos, a partir de um pequeno assentamento humano. No entanto, não era ‘concreto’ o sentido de ‘cidade’ para os antigos. Por definição, ‘cidade’ significa condição cidadã ou aglomerado de cidadão, ou seja, é um confederação de indivíduos, os quais compartilham das mesmas normas político-religiosas. Assim, a cidade antiga era, em síntese, uma associação religiosa e administrativa forte, de modo que carregava os ritos, identidades e costumes das tribos que nela residiam. Em contraponto, essa cidade necessitava estar localizada em um ponto no espaço, e para ele se dá o nome de urbe – do latim urbs, que significa ‘círculo’, ‘perímetro urbano’. Nesse momento, voltamos à sentença original do texto: as cidades eram realmente criadas em um único dia? Incrivelmente, sim, pois essa união entre fratrias e tribos dentro de um culto coletivo, público, necessitava de uma ligação sagrada para existir; tendo a estrutura física da urbe – o santuário que levava anos para se estabelecer -, a cidade era fundada em um ato religioso de um único dia, na necessidade de oficializar essa confluência entre os grupos tribais.
O ritual da formação das cidades é descrito por diversos autores antigos. Tomemos como exemplo, a formação da cidade de Roma. Rômulo, o fundador, selecionou o local da cidade no monte Palatino, orientado pelos deuses. No dia da fundação, o povo purificou-se durante certos rituais sagrados. Em seguida, Rômulo cavou uma grande fossa em que foram despejados pedaços da terra dos territórios de onde vieram todos os homens que fundaram a cidade. Acima dela, foi posto um altar sagrado, o qual zelaria pela cidade com a proteção de um deus daquele povo. O altar de fogo erguia-se no centro da nova cidade, assim como a lareira erguia-se ao redor das casas. Esse dia de fundação continuou por séculos a ser celebrado, naquilo que se denominou festa natal, de nascimento de Roma.
É curioso notar que os indivíduos, na cidade antiga, estavam ligados a quatro diferentes sociedades, de modo simultâneo e hierárquico: primeiro, vinha a família – os deuses domésticos; depois a fratria; logo, a tribo; por fim, a cidade. O último e mais nobre estágio do homem antigo era alcançar um papel na vida pública da cidade, pois era assim que, de fato, tornava-se cidadão e, sobretudo, parte do culto do deus patrono.
Estruturalmente, estas cidades possuíam um chefe político, que também era a supra autoridade religiosa “rei-sacerdote”. Os líderes das tribos mais fortes escolhiam aqueles que governariam a cidade, remontando, desde cedo, ao surgimento de uma aristocracia. Durante a história, revoluções e batalhas transformaram a dinâmica dessas cidades, mas sua essência nunca de fato foi perdida. Sempre houve um tom sagrado naquelas cidades, as quais, com diferentes tradições, foram construídas para serem eternas.
Conclusão
Desde a pré-história, as religiões têm tido papel fundamental na sociedade humana. A partir do estudo das sociedades do passado, podemos assinalar que a religião foi o motor de todas as associações entre grupos, portanto, sendo a peça-chave na formação das cidades antigas. A mesma religião que estabeleceu grupos unidos, foi a que ditou códigos de conduta, culminando no direito público e privado dos antigos. Sendo a associação religiosa e política entre tribos, a cidade antiga para a civilização greco-romana foi, de fato, essencial para o desenvolvimento moderno dos nossos espaços urbanos. Por mais diferentes que sejam nossas cidades modernas, seguramente, legamos o senso profundo de eternidade daquelas remotas e ancestrais ‘cidades antigas’, perdidas no espaço, mas perpétuas na história.
Observações:
O texto foi baseado, essencialmente, na obra ‘Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges. Portanto, cabe-me reproduzir um comentário do autor sobre o estudo dos povos greco-romanos antigos. “Tudo o que de Gregos e Romanos conservamos e por estes nos foi legado faz-nos ver quanto a esses povos nos assemelhamos; pesa-nos, pois, ter de considerá-los como povos estrangeiros […] A ideia formada sobre a Grécia e Roma muitas vezes perturba as nossas gerações. Por uma observação errada das instituições da cidade antiga, imagina-se poder fazê-las reviver entre nós nas leis da atualidade”. O desenvolvimento das sociedades antigas deve ser considerado como um processo lento, específico e ocorrido durante um contexto histórico cultural único, sendo nosso papel analisá-lo de forma neutra e distante.
Referências:
BARBOSA, Janio Gustavo. A festa da urbe e o nascimento da cidade: “A cidade antiga” como prelúdio da modernidade. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. Disponível em: < bit.ly/354PMGz >. Acesso em 07/06/2021.
COULANGES, Numa Denis Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009.
GOBATO, Douglas Raphael. A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges: um estudo das bases legitimadoras do direito na Antiguidade. Acta Jus, 2014. Disponível em: < bit.ly/3wbW0Aj >. Acesso em: 07/06/2021.
HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. Disponível em: < bit.ly/3pBTEZd >. Acesso em: 08/06/2021.
SOUZA, Levi Leonel. Resenha crítica – A cidade antiga (La cité antique). Revista Rua, 2009. Disponível em: < bit.ly/3iupTb6 >. Acesso em 07/06/2021.