VIÚVA NEGRA — de epifania a desastre

Uvas-passas, biscoito ou bolacha, “sopa é janta?” e Woody Allen. O governo, maçã na maionese, Toddy ou Nescau e Armie Hammer — limites ultrapassados com sucesso, podemos começar. O ponto é que não há polêmica nesse mundo que se compare ao que virou o grupo das meninas do Comtexto depois de assistirmos à Viúva Negra. De um lado, havia quem defendesse a Marvel e o trabalho feito com a história de Natasha, do outro, quem se decepcionasse com o potencial perdido pelo sucessor de Ultimato. Dezenas de áudios depois, finalmente consenso: concordamos em discordar. Daí, surge a ideia… À la Extraordinário, vem aí a primeira parte de um “he said, she said” de Viúva Negra — aqui, você encontra a minha visão sobre o lançamento da Marvel.

Se algum integrante do MCU é consenso dentre os admiradores da franquia, esse alguém é Natasha Romanoff, nossa eterna Viúva Negra. Em meio a seu perspicaz raciocínio, sua excelência técnica e suas mirabolantes acrobacias, Natasha possui um único poder: si mesma. A astúcia da mulher, fria, metódica, cirúrgica, mas, ainda assim, passional, é de se espantar. E é natural que esse espanto acarrete curiosidade: como uma menininha soviética se tornou essa máquina de batalha?

Desse modo, não me estranha que o anúncio no novo filme tenha paralisado a comunidade dos fãs de cultura pop. Quem não quer descobrir os percalços pelos quais foi submetida nossa heroína? Qual é o ser vivo que não queria expandir-se no universo em que se formou a mulher mais INCRÍVEL do mundo dos quadrinhos? Pois é. Com sucesso, Marvel lançou uma fortuna profecia sobre o filme que, finalmente, após dois árduos anos, continuaria a trama do bombástico Ultimato.

Expectativas infladas, foi decepcionante a impressão que me acometeu conforme o vazio — ainda que tão promissor — enredo se desdobrava. Se gostaríamos de descobrir como a garota se tornara tamanha potência, o que recebemos é um sentimental panorama sobre sua vida familiar. Se o desejo é assistir a duas horas de Natasha “kicking ass”, com um pouco de sorte presenciamos três cenas de ação. E, ainda assim, se a curiosidade aguçada implora pela explicação do que aconteceu em “Budapexte”, menções à capital da Hungria cumprem um só papel: garantir uma ligação entre o longa temático de Natasha às outras edições de “Vingadores” que, aí sim, são bons exemplos de ficção científica e — para o desespero de Tashinha — ação.

O espectador, de início, acessa um pedacinho da traumática infância de Natasha vivendo com seus “pais” e a irmã Yelena, e é confrontado com o treinamento ofensivo ao qual são submetidas as garotas pela KGB. Depois de receber um suspiro do passado de Natasha — infelizmente, mas subentendido que retratado — há, então, um salto na complexa linha do tempo que tanto apreciamos. Agora no período de tempo que sucede o polêmico “Guerra Civil”, Natasha, adulta, se vê desamparada devido ao conflito interno entre os Vingadores, procurada e vulnerável. A partir deste ponto, inicia-se o projeto de “reconstituição” de Natasha, que, em busca da terrível Sala Vermelha, onde está Dreykov, a grande mente maligna por trás dos dilacerantes treinamentos soviéticos, reencontra sua irmã e parte, então, numa busca por seus “pais adotivos” que promete informações e, talvez, até apoio. 

A partir do ponto aprazível em que ocorre o encontro entre Natasha e Yelena, o telespectador é banhado de um fraco roteiro, que serve mais como pretexto para uma grande conclusão “girl power” do que por si só, maneira suficiente de entretenimento. A dupla Natasha-Yelena, ou, ainda, Scarlett-Florence, que é tão dinâmica, e talvez a melhor coisa sobre o filme, é tristemente apagada quando imersa nos desinteressantes e insípidos dilemas “familiares”. Viúva Negra, então, torna-se o curioso caso do filme de super-herói que virou drama, e salva-se apenas quando somos agraciados com o “quebra-pau” que a Marvel já aprendeu a fazer com maestria. 

E não é como se a franquia estivesse sem verbas, ideias ou opções para tornar a história de Natasha mais interessante. Decidem abordar o passado de Natasha, e, de algum modo, escolhem a pior porção dele, ignorando toda a expectativa criada acerca das habilidades da heroína. Mais tarde, ainda, dispondo de infinitas possibilidades para agregar suspense e significado ao conflito que move toda a produção, escolhe-se o caminho mais monótono, conturbado e confuso. E, por fim, ainda contando com um último respiro de alívio cômico, a escolha é inocular à icônica figura de nosso eterno Hopper, o “pai”, que renderia inúmeras piadas, tiradas e quebras de expectativa. Quer dizer, o cara tem literalmente Karl Marx tatuado nas mãos, e o melhor que puderam tirar dele foi a ridícula cena do resgate com o helicóptero? A “mãe” então, não merece nem ser mencionada por aqui. Que participação dispensável e sem graça!

Uma vez superado o atordoado roteiro, ficamos, então, com a fórmula mágica e técnica, que, como supracitado, é tão dominada pela Marvel. Há pouco a dizer quanto à escolha de cores, figurino e ambientação. A estética do filme é principalmente representada pelo contraste entre o vermelho e o branco. O primeiro, que tão bem demonstra a feminina força da protagonista, é diferenciado do branco e ressalta as duas facetas de Natasha, tão cautelosa quanto voraz. É incrivelmente legal apreciar toda a beleza do filme, ainda mais com um trabalho de câmera tão íntimo: até demais, na minha opinião, já que em algumas cenas era quase possível avistar os microscópicos poros de Scarlett. Enfim… se eu pudesse fazer só mais um pedido ao “Tio Cenário”, não acho que um melhor retrato sobre a Sala Vermelha seria nocivo. Assim, o visual contribuiria para aumentar a tensão e dar mais sentido à vazia trama. 

A trilha sonora do filme, no entanto, não conta com o mesmo êxito. Bem como todo o resto do longa, são dramáticos demais os sons que vibram junto dos feitos de Natasha, fator esse, que, na minha experiência, foi agravado pelo som desproporcionalmente alto (talvez porque, pela primeira vez em muito tempo, vi o filme com alto-falantes de cinema). Em certo ponto do filme, numa cena de ação que deveria ser o ápice, o grande clímax, foi inevitável olhar para a reação da Ana Júlia diante da quase ópera que ressoava pela sala. Resultado: ela teve a mesma ideia, nos encaramos e, quase que simultaneamente,  soltamos uma bela gargalhada que só cessou quando percebemos que estávamos, inacreditavelmente, numa sala de cinema!

Extrapolando as questões técnicas e exatas que permeiam o líder da quarta fase do MCU, é inevitável mencionar as questões de contexto e “vida real” que se relacionam à obra. Primeiro, é claro, pensando no timing do filme, não sei imaginar um período de lançamento mais inconveniente. É claro que a pandemia postergou em meses absurdos o lançamento da obra que deveria pegar o embalo de Ultimato e prestar a homenagem devida à Viúva Negra. O que recebemos, por isso, foi um reconhecimento tardio da importância da personagem, seguido da apresentação explícita demais de Yelena, aquela que a substituirá — e, inclusive, não foi vista vez sequer em Ultimato. A introdução da nova heroína, que é sim, interessante e carismática, seria indubitavelmente mais sutil e divertida caso ocorresse como a de Peter Parker. Com certeza, fica mais fácil simpatizar com o substituidor quando o substituído ainda não teve a morte anunciada, se é que vocês me entendem.

Há, ainda, aqueles que defendem com unhas e dentes o trabalho de continuidade do Universo Cinematográfico. Por mais que eu assuma que esse quesito nas produções da Marvel esteja longe de ser imprestável, irrita-me que comparem a produtora com gigantes da história do cinema. Se a Marvel sabe bem reaproveitar figurinos e forçar uma conversação entre filmes; parabéns! Se suas cenas pós-créditos promovem relações mirabolantes; que bom! Mas a franquia está longe de ser a melhor referência de sci-fi da atualidade, de revolucionar o cinema ou de marcá-lo. E a causa principal disso é que os filmes abraçam mais do que conseguem segurar. O que nos leva ao próximo e último tópico…

Quando foi que as pessoas ficaram chatas ao ponto de não conseguirem mais aproveitar um filme de herói simplesmente porque ele é bom? Porque o protagonista é incrível, tem poderes inovadores, carrega uma história interessante e combate inimigos igualmente fascinantes? Estamos aqui diante de um filme que conta a história de uma menina que foi arduamente treinada, sofreu uma lavagem cerebral, tornou-se estéril, virou uma adulta só, poderosa e parte do mais sensacional grupo da face da Terra — e ainda derrotou soviéticos perversos. Por que o comentário mais óbvio sobre ele foi quanto à sororidade, girl power e sexualização da mulher? Caramba, deixem minhas irmãs serem maravilhosas e, por si só, realizarem magníficos feitos! E se você acha que mulheres super-heroínas são uma grande inovação e conquista da gen Z, sinto em te informar que Natasha e Yelena são parte da Marvel Comics desde, respectivamente 1964 e 1999.

E não me entenda mal: não é que tudo que a Marvel produza seja miserável e Viúva Negra represente o que há de pior no cinema. Não! É incrível se entreter com as animadoras histórias dos heróis de que tanto gostamos. A única coisa que não podemos tirar de mente enquanto o fazemos é o lugar de cada coisa. Se Viúva Negra não atingiu seu potencial completo, é porque não soube distinguir entre eles. Pairando entre a ação e o drama; o divertimento e a reflexão descabida, Viúva Negra deve ser assistido não só pela análise que proporciona e o período histórico ao qual remete, pelo simples fato de que nossa dupla de protagonistas é o máximo.

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