ARTIGO CIENTÍFICO: O Processo da Eutrofização Artificial nos Oceanos, seus Impactos e Possíveis Soluções
O relatório de 2019 da União Internacional para Conservação da Natureza sobre Mudanças Climáticas e Oceanos apontou que a “eutrofização artificial” é uma das poluições mais nocivas ao meio ambiente e, consequentemente, ao ser humano (IUCN, 2019). No passado, a comunidade científica tão pouco explorava o nebuloso processo da eutrofização que, somente no ano de 1974, o limnologista David William Schindler trouxe à luz a temática com a publicação de um estudo denominado Eutrophication and Recovery in Experimental Lakes na revista Science. Assim, sua tese experimental foi uma das pioneiras na literatura internacional a reconhecer que o desequilíbrio trófico em meios aquáticos, devido ao processo de eutrofização, estaria ligado a práticas antrópicas como a agricultura, indústria e despejo de esgoto (SCHINDLER, 1974).
Nesse sentido, a eutrofização artificial ocorre pelo aumento inatural da disponibilidade de fatores necessários para a fotossíntese e respiração celular de seres produtores da cadeia trófica, a exemplo de cianobactérias e fitoplânctons, que se aproveitam dos nutrientes fertilizantes – especialmente fosfatos [PO₄³⁻] – presentes na poluição (SCHINDLER, 2006). O resultado ecológico do processo, artificialmente acelerado, é de um fatal desequilíbrio trófico na cadeia, ocasionando: descontroladas eflorescências algais, proliferação excessiva de bactérias anaeróbicas, contaminação da água e a possibilidade da morte de seres vivos em razão da hipóxia [escassez de oxigênio] (CHISLOCK et al, 2013).
Nas áreas oceânicas próximas a conglomerados industriais, a povoados ou ao agronegócio intensivo – como é o caso da bacia do mar Báltico, na Europa, da costa Leste e golfo do México, nos Estados Unidos, e da costa do Extremo Oriente, na Ásia (Figura 1) -, a morte dos seres devido à eutrofização gera as chamadas “zonas hipóxicas”, sem disponibilidade de oxigênio. Ao mesmo tempo, a eutrofização nessas áreas impacta nas questões econômicas, gerando prejuízos que, de acordo com um estudo da Comissão Europeia de Relatórios Técnicos, impactam nos setores da saúde humana, no turismo e recreação, na pesca e na remediação de seus danos. (ZONAS, 2011; SANSEVERINO et al, 2016)
De maneira natural, o processo de eutrofização ocorre durante milhares de anos, através do acúmulo de sedimentos em ecossistemas aquáticos, geralmente lênticos – lacustres, estacionários (CARPENTER, 1981). O aumento de sedimentos permite que nutrientes se dissolvam na água e sejam usados por fitoplânctons, algas unicelulares e cianobactérias para obtenção de energia. No entanto, quando há um excessivo acréscimo de fatores do crescimento desses seres, como o aumento de nutrientes fertilizantes, ocorre a denominada Eflorescência Algal Prejudicial – Harmful Algal Bloom [HAB], em inglês (SCHINDLER, 2006; NOAA, 2021).
Sob essa perspectiva, analisou-se que ações antrópicas como o escoamento agrícola – especialmente de fertilizantes que contém sais de amônio, Fósforo e Nitrogênio [NPKs] -, a contaminação por resíduos industriais e o despejo de esgotos urbanos são as principais causas para um significativo aumento de nutrientes em ambientes aquáticos, gerando as HABs e as “zonas hipóxicas” (SCHINDLER, 1974). Um relatório publicado na Revista Brasileira de Ciências Agrárias sobre a composição química da matéria orgânica de lodos de esgoto, por exemplo, indicou alta presença de elementos catalisadores das HABs: em um quilo de matéria orgânica sólida havia, em média, 39,02 gramas de Nitrogênio e 2,93 gramas de Fósforo (CARVALHO et al, 2015). Um ecossistema, de acordo com o Índice do Estado Trófico de Lamparelli, atinge um estado trófico alto quando agrega elevada concentração de Fósforo acumulado, pois aumenta-se a disponibilidade de um dos componentes da respiração celular – Fósforo em forma de fosfato [PO₄³⁻]. Logo, esses grupos de fosfatos se ligam ao ADP, adenosina difosfato – como pode-se observar na Figura 2 – acelerando a síntese da molécula ATP, adenosina trifosfato, responsável pela catalisação energética das reações da respiração celular. Além do mais, para os seres produtores como fitoplânctons, o excesso de fosfato agiliza as reações da fotossíntese que acontecem durante o Ciclo de Calvin. Em detalhes, o fosfato está presente na fixação do carbono, quando a Ribulose bisfosfato se liga ao monóxido de carbono (RuBP+CO) e na conversão do ácido 3-fosfoglicérico (3-PGA) em açúcares pela nicotinamida adenina dinucleótido fosfato (NADPH). A presença chave de nutrientes, como o Fósforo, nas reações químicas da fotossíntese e da respiração celular explicam o motivo da acelerada multiplicação de seres autótrofos e unicelulares em ambientes poluídos. (CHISLOCK et al, 2013; CARPENTER, 2015; CICLO, 2016).
Em prossecução, seres unicelulares com altas taxas reprodutivas, como os fitoplânctons, proliferam-se desenfreadamente, gerando transformações no meio. Primeiramente, a coloração da água se altera, devido à presença de algas e cianobactérias pigmentadas (Figura 3). Em seguida, toxinas prejudiciais à biodiversidade marinha e aos humanos podem surgir, ocasionando fenômenos como o da “maré vermelha” (Figura 4). Por fim, o ecossistema caminha para o aumento de seu estado trófico, ou seja, eleva-se a circulação de nutrientes limitantes do crescimento e da fotossíntese. (CHISLOCK et al, 2013; NOAA, 2021).
Em decorrência disso, ocorre o acúmulo dos seres unicelulares na superfície, impedindo a entrada de luz para a fotossíntese de algas submersas. A partir do experimento (Figura 4) é possível observar a camada de fitoplânctons e algas, que barram a luz, na foto B, relacionada com sua faixa de estado trófico. Com a morte dessas algas e dos fitoplânctons, bactérias decompositoras aeróbicas decompõem os seres mortos e consomem o oxigênio do ambiente. A falta de fotossíntese e o consumo excessivo de oxigênio restante pelas bactérias aeróbicas resulta na hipóxia, ou seja, baixo teor de oxigênio no ambiente. Esse processo gera as condições necessárias para o florescimento de bactérias anaeróbicas, que, rapidamente, se reproduzem e dominam o ambiente marinho, liberando gases tóxicos, como o sulfídrico, e contribuindo para um decréscimo significativo na biodiversidade do ecossistema. (ZONAS, 2011; CHISLOCK, et al 2013)
Além de aniquilar a biodiversidade marinha, o fenômeno da eflorescência algal, que resulta na eutrofização das águas, aumenta a acidez dos oceanos devido ao excesso de carbono liberado durante a decomposição dos seres mortos. Dessa forma, graças à depravante e evitável poluição antrópica, a existência de vasta biodiversidade, a qual não se adapta ao hábitat adulterado, é seriamente ameaçada (NOAA, 2021).
Como consequência, os danos à fauna e à flora aquática se revertem aos próprios seres humanos. De acordo com um estudo publicado no jornal acadêmico Environmental Science and Technology, os custos dos danos à biodiversidade aquática nos Estados Unidos, sob uma perspectiva conservadora, excedem 2,8 bilhões de dólares anualmente (DODDS et al, 2008). A partir de parâmetros globais e marítimos, a perda financeira relacionada à eutrofização artificial das águas pode ser ainda maior. A exemplo dos efeitos maléficos da eflorescência algal pode-se citar o evento da morte de peixes na costa Leste americana. Em meados dos anos 1990, distintivamente no estado da Carolina do Norte, um surto de algas do tipo Pfiesteria piscicida acarretou a morte e contaminação de dezenas de milhares de peixes, ocasionando um desequilíbrio no ecossistema. Segundo estudos, é provável que o fenômeno tenha sido causado pela deposição excessiva de matéria orgânica na costa do estado (BURKHOLDER, 2001). Embora muitos peixes tenham morrido, os sobreviventes estavam contaminados com toxinas nocivas aos seres humanos, liberadas pelas algas, afetando ainda mais a economia pesqueira da região. No total, acredita-se que foram perdidos em torno de 100 milhões de dólares mensais durante a crise, cifra que engloba perdas da economia da pesca, danos à saúde e medidas protetivas do governo (SANSEVERINO et al, 2016). Assim sendo, o exemplo nos traz à tona a necessidade da busca por soluções para esse problema, uma vez que, tornando-se amiúde, pode incutir em diversas externalidades econômicas negativas e em distúrbios ecológicos no futuro.
Nesse sentido, a comunidade global, a partir de órgãos como o PNUMA, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, vem integrando o tópico às agendas de preservação do meio ambiente, a partir de medidas que visem a diminuição da eutrofização ao redor do mundo. Dentre as soluções para o infortúnio, existem os meios remediativos, usualmente mais caros, e os métodos preventivos-estruturais (SANSEVERINO, 2016). Para reavivar o ciclo do oxigênio nos corpos d’água, pode-se introduzir oxigênio por bombeamento e, ao mesmo tempo, inserir algas fotossintetizantes. Em reação, pode-se aplicar algicidas e herbicidas para diminuir a quantidade de fitoplânctons e algas em excesso (BOYD e TUCKER, 1998). Finalmente, outra forma remediativa seria o tratamento dos esgotos urbanos, através da adsorção, por exemplo, antes do despejo em corpos d’água, a fim de diminuir a quantidade de nutrientes.
Embora promissoras, essas respostas ao problema são extremamente caras e, certas vezes, insuficientes para a enorme escala de tratamento necessário. Portanto, as soluções mais plausíveis giram em torno da prevenção. Exemplos dela seriam a regulação do despejo de nutrientes na agricultura – da qual 78% da eutrofização do mundo provém -, uso correto do solo a partir de análises de especialistas e a implementação de modelos matemáticos e técnicas de análise molecular para prever a ocorrência das eflorescências. Ademais, existem formas alternativas de tratamento do problema, como:
- a fitorremediação, que usa plantas para extrair os nutrientes indesejados;
- a irradiação ultrassônica, que pode matar o excesso de fitoplâncton na superfície das águas;
- a precipitação química do Fósforo.
A precipitação do Fósforo é um processo em que ocorre a coagulação, floculação e decantação desse material, por meio da adição de sais específicos. A partir dessa reação, o Fósforo é inativado e sedimentado no meio aquático, diminuindo sua disponibilidade na água, assim não mais podendo ser utilizado pelos fitoplânctons em reações de energia. Para que isso ocorra, são adicionados sais cálcicos (A), alumínicos (B) ou férricos (C), a fim de neutralizar o Fósforo (Figura 5). As três reações principais que compõem essa medida de remediação estão demonstradas na Figura 5, sendo que a mais vantajosa delas é a B, dado que a alteração do pH do ambiente após a reação é menor do que comparado com as outras.
Por fim, a manobra de biomanipulação, alterando a cadeia trófica do ecossistema, pode levar ao equilíbrio de um ambiente eutrofizado. Através da inserção de um consumidor terciário, os predadores dos zooplânctons morrem, fazendo com que fitoplânctons sejam consumidos em maior quantidade. De qualquer maneira, é necessário investimento e conscientização popular, a fim de contribuir para a resolução do problema em sua totalidade (CHISLOCK et al, 2013; ENVIRONMENTAL, 2019; IUCN, 2019; POSSIBLE, 2019).
Em síntese, a partir de técnicas químicas paliativas, medidas estruturais preventivas e da consciência sociocientífica necessária, podemos promover soluções e mecanismos que atenuem esse tão sorrateiro, mas significativo, distúrbio artificial, que acomete nossos oceanos no mundo inteiro.
REFERÊNCIAS:
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BURKHOLDER, J. M.; GLASGOW, H. B. History of Toxic Pfiesteria in North Carolina Estuaries from 1991 to the Present. BioScience, Volume 51, Issue 10, October 2001, Pages 827–841. Disponível em: < bit.ly/3cZ48vz >. Acesso em: 15/03/21.
CARPENTER, S. R. Submersed vegetation: an internal factor in lake ecosystem succession. The American Naturalist ed. 118, 1981. Disponível em: < bit.ly/3qzq4lY >. Acesso em: 11/03/21.
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CHISLOCK, M. F.; DOSTER, E.; ZITOMER, R. A.; WILSON, A. E. Eutrophication: Causes, Consequences, and Controls in Aquatic Ecosystems. Nature Education Knowledge, 2013. Disponível em: < go.nature.com/3qt1e7a >. Acesso: 08/03/21.
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*Texto produzido para a Olimpíada de Química de São Paulo (OQSP) no ano de 2021.