O AUTO DA COMPADECIDA
★★★★
“Não sei, só sei que foi assim”, Chicó
Há algumas semanas, fui convidada pela minha escola para participar de um júri simulado. Surtei! Eu sou completamente o tipo de pessoa que se anima com a possibilidade de participar de um julgamento fictício. Mas a situação ainda fica melhor… A gente não iria só julgar de mentirinha — nossos objetos de análise seriam, também, personagens de mentirinha. É, eu sei. Mas quando minha professora anunciou que os réus da questão seriam Chicó e João Grilo, encontrei a oportunidade perfeita para reavivar “O Auto da Compadecida”. Meu último contato com a história se dera lá no passado remoto de 2018, que eu sabia não ser suficiente para o repertório da minha decisão de jurada. Quanta responsabilidade!
Imaginei que minha memória sobre a história estivesse bem turva. A acusação da dupla, mesmo diante de todas suas desventuras, não parecia fazer sentido. O que exatamente julgaríamos naquele dia? Furto? Roubo? Corrupção passiva? Estelionato? Incontáveis danos morais? Eu não fazia a menor ideia.
Abri meu aplicativo de filmes — o Letterboxd, que ainda vai ser muito mencionado por aqui — e encontrei “O Auto da Compadecida”. Quando localizei o título na minha lista de filmes, o que mais me chamou a atenção foi que o longa apresentava a segunda melhor média avaliativa do aplicativo. Decidi, então, ver o que o pessoal que eu sigo por lá dizia sobre a obra. Para minha surpresa, foi evidente a disparidade entre as avaliações de meus queridíssimos gringos e aquelas dos usuários brasileiros. Esses primeiros pareciam não ter curtido o filme, coisa essa evidentemente oposta às muitas estrelinhas cedidas pelos brazucas que avaliaram o clássico do nosso país. Restava-me tentar entender a discrepância.
Li a peça de Ariano Suassuna há pouco mais de dois anos e, modéstia à parte, desde o começo senti sua genialidade. O modo leve e humorístico com o qual o autor retrata a árdua realidade nordestina faz jus a toda sua fama. Suas críticas, sempre ácidas e auto-explicativas — uma verdadeira aula de show, not tell* –, acarretam mais impacto que muitos discursos moralistas. Somado a isso, está o dinâmico, inteligente e nada convencional enredo. Enredo este, devo dizer, a única coisa que manteve a Laura de 13 anos — toda perdida na variação linguística nordestina — imersa e fiel ao auto de Suassuna. Meu professor de redação agradece.
O filme estrelado por Selton Mello, de quem gosto muito, narra as desventuras dos amigos Chicó e João Grilo em meio às suas infindáveis confusões. Conforme a dupla ocupa o específico cenário nordestino no início dos anos 30, é evidenciada sua criativa, mas nem sempre íntegra, busca por melhores condições. Sempre adornada de um humor ímpar, a jornada retratada desempenha papel extraordinário na adaptação da peça. Suas falas, dinamicamente proferidas e carregadas de humor perspicaz, não permitem que a monotonia que sempre notei em autos se manifeste. Os atores, embebidos do animador astral que emana o texto, são excelentes representantes de seus estereótipos, e, mesmo que se aproveitem do inevitável teor caricato para a construção do humor, têm traços particulares o suficiente para tornar a obra tão única quanto seu roteiro.
Em vista da tão brilhante, certeira e — repito! — genial obra, entendi o porquê dos americanos (em geral) não sacarem a beleza da experiência. “O Auto da Compadecida” é o Brasil, e o Brasil somente. Você consegue imaginar as tiradas de João Grilo, todas carregadas de elementos tão intrínsecos à nossa cultura, traduzidas ao inglês? Pois é, nem eu. Agora… Imaginemos que uma extensa equipe de tradutores cumpriu essa proeza. Você consegue pensar na tradução de uma frase tão icônica quanto “Estou cansado dessa agonia de fica rico, fica pobre, fica rico, fica pobre”? Bate um desespero se sequer imagino a tradução dessa máxima. Em português, por outro lado, o dito desperta gargalhadas da primeira à última vez que o ouvimos.
Há, ainda, quem diga que esse desinteresse generalizado dos anglo-saxões pelo cinema brasileiro se dê pelo fato de seus padrões estarem elevados por suas inúmeras produções hollywoodianas. Permita-me discordar. A cultura brasileira é rica e própria demais para que qualquer outro no mundo tenha o prazer de compreendê-la integralmente, assim como nunca ninguém de fora dominará tão bem nossa linguagem a ponto de aproveitar uma obra de Suassuna. Bem, pode até ser que a recíproca seja verdadeira, e que as nossas impressões sobre os famigerados filmes americanos também sejam deturpadas. Preciso ser sincera aqui. Mas, em vista de produções nacionais tão primorosas quanto “O Auto da Compadecida”, a gente sente que perder esse pedacinho de interpretação americana vale a pena. Tudo bem. É uma troca super justa.
Pelo menos por um dia, o trabalho de Suassuna me fez acordar feliz por ter nascido nesse Brasilzão. Por ter a chance de encher esse texto de palavras legais, de expressões únicas e das mais diversas figuras de linguagem.
****
O júri simulado, agora aproximado do filme que roubou todos os holofotes, evidentemente perdeu um pouco do brilho. No fim, o que estava em questão era a cena da gaita e do cangaceiro, sabe? Aquela que a gente não vai especificar aqui porque carrega um spoiler enorme.
Acontece que, para minha surpresa, muitos interpretaram a atitude de João Grilo e Chicó como homicídio doloso qualificado, e não legítima defesa. Que palhaçada! Terminamos a sessão com a condenação do primeiro da dupla, e eu, sua defensora nata, não hesitei em mandar áudios e mais áudios provando a inocência do meu desonesto favorito para a Ana Ju e para a Gi. Ah! Essa justiça brasileira, viu!
Agora, uma coisa é fato. Não entrei em mais detalhes sobre a fatídica cena para evitar spoilers imensos por um simples motivo… Você PRECISA ver esse filme. Acredito que deveria ser obrigatório para tirar a “carteirinha” de brasileiro.
Aproveite e faça o seguinte: junte a família nesse fim de semana (porque pensa num filme que agrada qualquer um!), curta o entretenimento e, depois, volta aqui para me contar se você tem absoluta certeza ou certeza absoluta de que os protagonistas só estavam se defendendo. Também aceito comentários sobre a genialidade — ou não — do longa, viu?
*Show, not tell: quando uma obra literária, normalmente do gênero dramático, transmite sua história sem possuir um narrador em específico e, sim, através das ações e falas dos personagens, fazendo com que o leitor se ponha mais naturalmente no lugar dos personagens.