A NOVA FRONTEIRA DA SUSTENTABILIDADE: A Química dos Processos de Reciclagem do Lixo Eletrônico

Em Outubro de 1976, o Congresso Americano aprovou a lei de Conservação e Recuperação de Recursos, a qual propunha normas de descarte de lixo sólido e lixo tóxico. Naquele contexto, a legislação tornou-se uma das precursoras a tratar, dentre outras temáticas, do manejo adequado do lixo sólido gerado por eletroeletrônicos. Apesar do pioneirismo, somente décadas mais tarde, tal tipo de lixo passou a ser estudado, definido e seus processos de descarte e reciclagem explorados. Segundo o Monitoramento Global de Lixo Eletrônico 2020 da Organização das Nações Unidas, o termo e-waste (electronic-waste, ou “lixo eletrônico”, em inglês), cunhado em um artigo científico no ano de 1999, refere-se a uma variedade de lixos que possuem circuitos, componentes eletrônicos ou baterias, como celulares, televisores, aparelhos de som, placas de vídeo, processadores, microondas, lâmpadas eletrônicas, impressoras, entre outros.

Nas últimas décadas, o aumento exponencial da produção de eletroeletrônicos (usados em áreas como saúde, segurança, energia e transporte), sua crescente popularização entre as diversas classes sociais e a obsolescência cada vez mais veloz de equipamentos eletrônicos propiciaram uma geração titânica de lixo eletrônico. Em 2019, em torno de 53,6 milhões de toneladas de lixo eletrônico foram geradas, mas somente 17,4% desse valor foi reciclado no mundo nesse mesmo ano. Os resíduos eletroeletrônicos (descartados em aterros sanitários, lixões e, muitas vezes, exportados de países desenvolvidos para subdesenvolvidos) são pouco reciclados, pois existem baixas iniciativas, tanto de empresas como de governos, para a reciclagem desse tipo de lixo. Quando existem, a reciclagem dos materiais, que visa geração de renda com a venda de metais presentes no e-waste, muitas vezes é feita de maneira imprópria, resultando na poluição do solo, das águas e da atmosfera. Por sua vez, o acúmulo irregular desses resíduos pode levar componentes químicos a serem lixiviados, contaminando solos e águas subterrâneas nas regiões dos lixões, causando danos irreparáveis à saúde das pessoas, da fauna e da flora que vivem nos arredores. 

O problema tem tendência crescente, uma vez que inovações do meio técnico-científico e da vertente indústria 4.0 tornam as pessoas cada vez mais dependentes do consumo de eletroeletrônicos. No mundo atual, a capacidade de lidar com a geração de resíduos e-waste de maneira sustentável representa não só uma necessidade, do ponto de vista ambiental, mas também uma iniciativa para preservar vidas humanas.   É nesse contexto que a química se insere, de maneira a desenvolver soluções práticas e eficientes para a reciclagem do e-waste: o tipo de lixo que mais cresce no mundo.3,

Em termos gerais, a reciclagem dos resíduos de equipamentos eletroeletrônicos (REEEs) envolve diversas etapas de separação física e química dos polímeros, metais, resinas e sais. Existe uma vasta gama de elementos encontrados nos eletroeletrônicos, sendo muitos deles nocivos à saúde humana e à biodiversidade, quando manipulados de maneira indevida. Nesse sentido, governos e organizações internacionais promovem medidas que visem processos regulados, seguros e responsáveis de reciclagem do lixo eletrônico. Uma placa de circuito impresso (PCI), por exemplo, possui uma série de metais pesados em sua composição, como o mercúrio, o qual pode danificar o sistema motor e a atividade cerebral humana. Nessa lógica, a Tabela 1 caracteriza os principais componentes dos REEEs, indicando sua procedência e implicações na saúde dos seres humanos. Por essas razões, o processo de reciclagem de lixo eletrônico envolve diversas etapas cuidadosas e complexas, necessárias para a correta separação e destinação dos respectivos componentes.5,

Primeiramente, a etapa inicial do processo de reciclagem envolve a triagem dos REEEs. Em muitos casos, são descobertos equipamentos não usados ou em pleno funcionamento, sendo estes destinados a ONGs e iniciativas de inclusão digital. Em sequência, os REEEs são desmontados, seus componentes separados e, finalmente, compactados, triturados e moídos. Barker e Doherty propõem que do estágio inicial da reciclagem deve-se seguir o tratamento dos polímeros (plásticos), a separação mecânica dos metais e a moagem e derretimento de vidro, a fim de proporcionar matérias-primas usadas na fabricação de bens de capital e na construção civil.5,

No caso dos polímeros, presentes em carcaças de eletrodomésticos, monitores, CPUs e teclados, a reciclagem procede da seguinte maneira: após a separação inicial, estes seguem para reciclagem energética (tornando-se combustíveis), reciclagem química (reprocessados pelo aquecimento para uso na indústria petroquímica), ou reciclagem mecânica (transformados em grânulos que, após moagem e lavagem, adquirem formato e função determinada). Dentre estes processos, o último apresenta melhor custo-benefício e menor impacto ao meio ambiente, por não produzir nenhum tipo de combustão energética. Dessa forma, copolímeros, poliestirenos, e policloreto de vinila (que representa 26% da composição dos polímeros de REEEs) são reciclados e utilizados novamente pela indústria.5,

Por sua vez, a reciclagem dos metais ganha destaque pela sua complexidade e pluralidade de processos físicos e químicos. Em termos globais, os metais de REEEs estão presentes nas placas de circuito e pontes de terminais eletrônicos. Para extraí-los, é necessário, primeiro, executar a etapa de separação mecânica proposta na tese de Barker e Doherty. Essa fase constitui-se da cominuição (redução das partículas por meio da britagem e moagem), classificação (distribuição dos grânulos resultantes, classificando-os pela milimetragem e característica química) e separação (isolamento de componentes pela densidade e magnetismo). Nas PCIs, averiguou-se que em torno de 70% dos materiais presentes são não-metálicos, como polímeros e cerâmicas, sendo a separação mecânica essencial para garantir uma refinada extração posterior dos metais.5,7

Nessa etapa, os metais podem ser submetidos a diversos processos de refino. Um deles, a pirometalurgia, proporciona mudanças físico-químicas e estruturais nos metais, postos em fornalhas com altas temperaturas. O processo, que envolve etapas em aerobiose (calcinação), e anaerobiose (pirólise), produz metais e ligas metálicas purificadas. Há também a hidrometalurgia, processo no qual ocorre a precipitação de metais dissolvidos em soluções ácidas, alcalinas ou lixiviantes. Nessa série hidrometalúrgica, o principal processo de extração é a precipitação seletiva, a qual pode ser compreendida a partir da análise de dois experimentos – I e II – propostos neste texto para ilustrar o procedimento.5,6,8

Primeiramente, o experimento I propõe uma tentativa de precipitar seletivamente o hidróxido de ferro III [Fe(OH)3] frente ao hidróxido de magnésio [Mg(OH)2], a partir da adição de hidróxido de sódio [NaOH] aos seus respectivos sais: sulfato de ferro III [Fe2(SO4)3] e cloreto de magnésio [MgCl2]. Como hipótese central, o gotejamento da base na solução dos sais deveria gerar os seguintes equilíbrios:

Equação 1: Fe3+ + 3OH ↔ Fe(OH)3 KPS = 2,79.10-39

Equação 2: Mg2+ + 2OH ↔ Mg(OH)2 KPS = 1,8.10-11

Nesse sentido, uma vez que a constante de produto de solubilidade (KPS) do hidróxido de ferro é muito menor comparada à de hidróxido de magnésio, é provável que o precipitado férrico seja formado primeiro.8 Observando a Figura 2b, o início da precipitação do hidróxido férrico é indicado pela presença de compostos gelatinosos esbranquiçados, característicos de bases precipitadas. Ao continuar o gotejamento de NaOH, esperava-se que, em dado momento, o Mg(OH)2 também precipitasse. Isso de fato ocorre, porém, inesperadamente, a coloração e composição da solução transforma-se de amarela para azul-esverdeada (Figura 2c). Por conta do surgimento de uma coloração inesperada, supõe-se que tenha ocorrido: (i) uma reação de redução de Fe3+; (ii) ou reações de complexação desses íons; gerando como produtos as bases insolúveis ou os íons complexos com ligantes OH solúveis. Por conta das análises colorimétricas-qualitativas, a fase amarelada conteria o íon Fe3+ e a esverdeada, Fe2+, ambos em mistura com o hidróxido de magnésio precipitado.

Apesar de apresentar resultados inesperados e inconclusivos, o experimento I demonstra a formação seletiva de precipitados metálicos na diferença entre suas constantes do produto de solubilidade (KPS) de seus hidróxidos, determinante do momento em que ocorre a precipitação.

Em outra tentativa, o experimento II parte de 90 mL de uma solução de sais de magnésio e cobre com as concentrações de 0,2 mol/L MgCl2 e 0,3 mol/L CuSO4, como mostrado na Figura 3a. Esse novo experimento traz à luz a precipitação seletiva de hidróxido de magnésio Mg(OH)2 e de cobre II [Cu(OH)2] a partir de seus sais [CuSO4.5H2O e e MgCl2] usando hidróxido de sódio como agente precipitante, como mostrado na Figura 3b. Como o KPS de Cu(OH)2 (KPS = 2,2.10-20) é menor do que a constante de Mg(OH)2 (KPS = 1,8.10-11), o hidróxido de cobre II precipita primeiro, conforme observa-se na Figura 3c.8 Com a adição de mais gotas de NaOH, o hidróxido de magnésio passa a precipitar, gerando turbidez na comparação de amostras, como mostrado na Figura 3d. Para extrações profissionais por precipitação seletiva de metais provenientes de grânulos de lixo eletrônico, utiliza-se procedimento mais robusto ao aplicado em ambos experimentos. Nesse caso, maiores recursos técnicos e químicos são mobilizados para a retirada do metal precipitado da solução, maximizando o rendimento da extração.

Um exemplo disso é o trabalho de Kinsman et al sobre a precipitação do ouro presente em resíduos do lixo eletrônico. Reagindo com um tipo uma diamida terciária em meio ácido de água régia, o ouro precipita e, após lavagem com água, é extraído em sua forma pura. Isso demonstra a relevância da precipitação seletiva na extração de metais.

Em síntese, a reciclagem do lixo eletrônico tem se tornado uma necessidade cada vez mais pulsante na sociedade, uma vez que o manejo inadequado desses resíduos e os processos de reciclagem irresponsáveis podem refletir em danos à saúde humana e à biodiversidade de ecossistemas. Nesse contexto, a química é essencial no destrinchar de técnicas mais modernas e refinadas de extração dos componentes materiais presentes nos resíduos eletroeletrônicos. As inovações dos processos de reciclagem não só fomentam um mercado bilionário ($57 bilhões de dólares, dados de 2020)3, como também contribuem para um futuro sustentável. Dessa forma, compreender, analisar e estudar métodos químicos de reciclagem mais refinados e ambientalmente aceitáveis compõem uma nova fronteira para a sustentabilidade no mundo.4

OQSP 2022 | Processos Químicos para Reciclagem do Lixo Eletrônico

  1. EPA. EPA History: Resource Conservation and Recovery Act. Disponível em: <bit.ly/3IO597y>. Acesso em: 23/03/2022

2. EWASTE MONITOR. The Global E-waste Monitor 2020: quantities, flows, and the circular economy potential. 2020. Disponível em: <bit.ly/3tMkFNa> Acesso em: 26/03/2022

 MERRIAM-WEBSTER. E-waste. Disponível em: <bit.ly/3tOz8IB>. Acesso em: 26/03/2022.

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