Resta o Respeito?

Você deve conhecer a fábula do Pastorzinho Mentiroso. Encarregado da proteção de suas ovelhas, o moço exclama, assustado, que um lobo ameaça seu rebanho; ele mobiliza toda sua comunidade, disposta a ajudá-lo. Mas o predador não passava de uma astuta invenção do pastor para pregar uma peça em seus colegas. Então, no dia seguinte, mais uma vez malicioso, o homem clama por ajuda: “Um lobo! Um lobo!”. A brincadeira se repete ao passo que, em certo ponto, as pessoas passam a não acreditar mais no pastor. Você já sabe o que acontece: o bendito lobo resolve aparecer. Desesperado, nosso jovem personagem implora por ajuda. Em vão. “Mais uma brincadeira” — pensam aqueles que o poderiam acudir. E assim, subitamente, “adeus, ovelhinhas!”.

Quando somos pequenos, nos ensinam que tal fábula trata da mentira: “na boca do mentiroso, o certo é duvidoso”. De fato, é assim que lidamos com os desonestos: não lhes dando mais confiança. No entanto, a fábula ilustra mais do que isso. A fala do pastor, antes tão valorizada e crível, conforme repetida e colocada em toda situação possível, indiscriminadamente, perde significado. A confiança no personagem não se esvai imediatamente, mas vai se perdendo no ritmo em que a denúncia é banalizada. É assim que as coisas funcionam: aquilo que é sempre repetido perde seu significado, ainda que, de certo modo ou em alguma ocasião, tenha sido legítimo. 

Somos todos pastorinhos da vida real. Não duvido que você, meu caro interlocutor, dê volume à nossa classe. Isso porque todos zelamos por algo que nos é muito querido: sejam valores, pessoas que amamos ou dores que levamos no peito. Todos nós estamos dispostos a lutar por uma coisinha que seja. Mas também não é difícil que essas coisinhas tão importantes se expandam e assumam lugares impróprios e que em nada contribuam para sua valorização. O que parece que não percebemos é que todo esse apreço que buscamos cada vez mais fortalecer perde sentido quando se tornam corriqueiras as discussões em torno de valores tão únicos.     

Esses dias, notei essa catastrófica banalização com o conceito de “respeito”. Por mais que o o significado do termo seja evidente e sua aceitação universal (não conheço ninguém que seja contra a boa educação), é incrível como essa virtude tem se perdido em meio a seu uso conveniente e sempre atrelado a discursos ideológicos. É fácil afirmar que aquele que não concorda com seu posicionamento — mesmo que mal embasado e seletivo — se recusa a aceitá-lo porque é desrespeitoso. E aqui nos deparamos com as múltiplas consequências que traz tal generalização. 

A mais nociva delas é, como bem ilustra nossa historinha, a subversão do significado de algo realmente valoroso. Se o desrespeito está presente naquele que possui reservas quanto a uma ideia questionável do mesmo modo com que está presente quando é praticado um grave linchamento embebido de comentários preconceituosos, então os dois comportamentos se equiparam. Quando um alarde é feito porque se recusam a aceitar seu ponto de vista, então o que denunciará o genuíno desrespeito? É assim, imperceptível e gradativamente, que perdemos a noção hierárquica que deve reger nossos atos, e que deturpamos conceitos úteis. A consequência disso para toda a sociedade é inegável: acabamos como um bando de perdidos que não sabem distinguir o que realmente merece atenção. Um explícito atentado à máxima “Escolha Suas Batalhas”.  

Mas as consequências da banalização não são só gerais e filosóficas. Elas embriagam, também, os indivíduos nela metidos, os que integram o clã que apropriou o termo. Conforme valores passam a ser usados sem qualquer critério e adquirem sentido ideológico e argumentativo, quem concorda com o ponto defendido assimila que tamanha sensatez e lisura lhes são exclusivas. Daí, se estabelece um ciclo de argumentos vazios e auto sustentados: “estou certo porque prego pelo respeito e você é um ser abominável porque não se deixa comover por ele”. Então, se fecham quaisquer portas para a discussão racional, que cede seu espaço aos sentimentos e vontades. Vou te contar uma coisa: os fatos não estão nem aí para eles. Se comportamentos indefinidos e convenientes adotados por um grupo guiam suas decisões de vida, não será preciso de muito até que ela se prove despropositada e, mais tarde, mentirosa. A qualquer momento, ele pode divergir de sua opinião enquanto indivíduo Aí, já é tarde demais. Um conjunto tão forte, estruturado e intransigente não vai hesitar em te colocar naquele volumoso balaio dos desrespeitosos. Vai por mim, tentar sair de lá é um caminho doloroso.    

Mas daí surge outra questão. Se você é um ser desprezível, desrespeitoso e que se recusa a ceder aos caprichos alheios, tudo o que sai da sua boca é tão deplorável quanto a imagem construída ao seu entorno. Mas isso não só arruina a possibilidade que alguém tem de expressar-se (ah, se os sensatos defensores da liberdade de expressão olhassem para isso!), como congestiona qualquer possibilidade de diálogo e, por conseguinte, evolução. Foi com a dialética, com o debate, com a mudança e a oposição que a humanidade se desenvolveu. Agora, com rótulos que mais parecem camisas de força, privamos qualquer diálogo que ultrapasse uma discussão de trivialidades. É assim que poucos colocam muitos num infinito círculo silencioso, no qual mais importa quem fala do que o que é falado. E você já sabe como é perigosa a monopolização da verdade.  

A intenção aqui é estabelecer uma reflexão de fato proveitosa, por isso, ressalto que é, sim, inquestionável a importância de valores como o respeito. Do mesmo modo, era evidente a ameaça que o lobo representava à vida das ovelhas. Era por elas que o pastor zelava. Os animais guiavam seu dia a dia e, por esse motivo, o personagem falhou. Falhou ao banalizar as ameaças daquilo que tanto lhe importava. Falhou ao não considerar sua possível trágica consequência. Tamanha preocupação deveria contemplar essa possibilidade, também. Do mesmo modo, nosso apreço pelos conceitos que nos importam não deve ser dissociado da cautela ao usá-los.

Confesso, caro interlocutor, que “respeito” aqui foi utilizado como uma grande alegoria aos muitos termos carregados de polêmicas e controvérsias, que tanto são debatidos atualmente. A intenção com isso foi construir uma abordagem mais ampla e neutra, de modo que preceitos não tão unânimes não cegassem sua concepção. Mas o ponto é que a maioria desses valores tem, sim, seu lugar, importância e uso; o que não exclui, mas reforça a necessidade de posicioná-los devidamente. 

Empresto, aqui, a comparação feita por Thomas Sowell, e digo que, bem como o ketchup, termos que demonstram tantas virtudes cabem em múltiplas ocasiões. A nós, resta o trabalho de saber dosá-los e aplicá-los nas situações corretas. Afinal, o mesmo ketchup essencial à batata frita é aquele que estraga qualquer pizza, não? 

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