Blade Runner
FRASES
Livro: “Eu me tornei um ser antinatural”
Rick Deckard, capítulo 21
Filme de 1982: “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”
Roy Baty
Filme de 2017: “você nunca viu um milagre”
Sapper
BLADE RUNNER: ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?
Uma das minhas maiores revelações literárias do último ano foi a de que adoro distopias. E foi por isso que, encarando a minha prateleira duas semanas atrás em busca de um livro, decidi apostar na obra de Phillip K. Dick. Desde o começo, eu achei curioso como essa, que é uma das histórias mais famosas de um dos escritores mais marcantes para a ficção científica do século XX, tem um nome praticamente irreconhecível. Era sempre assim: “que livro você está lendo?” “‘Androides sonham com ovelhas elétricas?’” “Nunca ouvi falar!” “É o ‘Blade Runner’” “Ah! Ouvi sim! A versão brasileira é essa?” “Não, esse é o nome original mesmo” “Eita, que estranho!” É, eu também achei… De qualquer maneira, decidi mergulhar nessa, até por ter tido a ideia de comparar o livro com suas duas adaptações mais famosas para o cinema: os tais Blade Runners. E é isso que eu vim fazer aqui hoje.
O LIVRO ★★★★
Vindo da cabeça brilhante, ou completamente maluca, de P.K.D. (não a que perderam numa viagem de avião em 2006, a autêntica), a história se situa num planeta Terra pós-apocalíptico, onde a superfície foi dominada por uma poeira radioativa que acaba com a sanidade mental e física dos poucos que não emigraram para Marte ou por falta de dinheiro, ou por já terem sido afetados pela poeira; estes eram chamados de Especiais. O protagonista do livro, Rick Deckard, continuava na Terra por conta de seu trabalho: caçar os androides ilegais que correm soltos pela Terra. Na história, sua missão é “aposentar” seis Nexus-6, os robôs mais fortes e realistas já vistos.
O livro é absurdo, para dizer o mínimo. Mas eu sou suspeita, porque ele reúne muitas coisinhas que eu gosto em livros. Para começar, ele é narrado em duas perspectivas diferentes, a de Rick e a do Especial J.R. Isidore, que está ajudando a proteger um dos androides da lista do caçador. Isso traz uma ironia dramática para o negócio, já que estamos acompanhando tanto a caça quanto o caçador, diminuindo essa diferença entre heróis e vilões; a escritora Ursula Le Guin disse uma vez que “não há heróis nos livros de Dick, mas heroísmo”. Além disso, apesar de não contar com nenhum plot-twist revolucionário que vai mudar a sua vida, o livro me deixou um pouco perdida, meio confusa e duvidando dos personagens – o que, nesse contexto, é um ótimo elogio. Conforme o livro se desenrola, vemos o protagonista perder a cabeça, enlouquecer de um jeito quase exponencial que deixa tudo mais e mais interessante. Agora, se o seu problema com o livro for a perspectiva das mais de duzentas páginas na sua frente, o fato de que o enredo se passa em um só dia pode te tranquilizar. Com esse tanto de perseguição e ação, não sobra muito espaço para enrolação ou partes monótonas de espera, o que faz a história fluir sem que você veja o tempo passar. E, por último, como todo bom livro, ele te deixa com mil indagações no final, não sobre a história em si, mas sobre o que ela quer passar. Fica aquele gostinho bom de que sua experiência com o livro não acabou quando você virou a última página, sabe?
O FILME ★★★ ½ (como filme) ★★ ½ (como adaptação)
Eu sinto que preciso explicar a história de novo, tantas são as diferenças… Aqui no filme, Rick, na verdade, tem que caçar só quatro androides: Pris (que me parece uma junção da Irmgard, que é deixada de lado no filme, e da própria Pris do livro), Roy, Zhora e Leon (esses dois últimos nem existem no livro, apesar de eu achar que Leon foi uma interpretação bem livre do androide Polotov). Além disso, enquanto no filme o caçador sai da aposentadoria para cumprir essa missão, no livro, ele ainda está no auge de sua carreira. E, pra completar com a mudança menos compreensível de todas, JR Isidore virou JF Sebastian (Ridley, por quê?)
Mas as mudanças da adaptação vão bem além disso tudo; eu ouso dizer, inclusive, que o filme poderia ser uma história completamente à parte. O longa fixa-se em alguns detalhes minúsculos do livro e faz deles centrais, enquanto diminui – ou completamente deixa de lado – a importância de alguns pontos-chave da obra original. Não me leve a mal, em alguns momentos isso é bom; foi interessante ver um simples comentário sobre o curto tempo de vida dos androides virar, no filme, sua motivação – que, no livro, falta, mas não faz falta. A questão é que, em troca disso, todo o existencialismo, as dúvidas constantes entre o que é autêntico ou fabricado, o desejo de Rick por um animal de verdade (que é quase sagrado nesse mundo, no qual a maioria está extinta), e, especialmente, o Mercerismo – uma religião no livro que toma proporções enormes na vida das pessoas – são deixados de lado. Eu senti falta desse sentimento de desconcerto, no geral, do qual Ridley abre mão em prol de uma ficção científica mais comercial.
Quanto ao mundo, é claro que as versões do livro e do filme refletem visões diferentes – até por causa desse buraco de trinta anos entre os lançamentos. Esse é um ponto forte do filme, inclusive; essa sensação inigualável de ficção da década de oitenta -a visão deles pra 2019, de um jeito bem mais distorcido e pessimista me lembrou da chegada de Marty McFly – o cara do “De Volta para o Futuro”- em 2016). O livro dá a impressão de que pouquíssimas pessoas continuam aqui na Terra, enquanto o filme preenche a tela com multidões e superpopulação, além de não mencionar a poeira radioativa, tão importante no livro. De certo modo, soa como um mundo diferente, mas é definitivamente um mundo interessante.
Agora, falando sobre o filme como filme e deixando de lado o fator de “adaptação” do negócio, as coisas melhoram. O jeito como a história é contada, apesar de um pouco devagar, é animador e envolvente. A cinematografia de tudo é tão impressionante quanto a trilha sonora e esse conjunto impede que as duas horas de filme fiquem massantes. Aliás, me surpreendeu a quantidade de sangue e luta – não que seja demais, só é mais do que eu esperava. Entre tudo isso e a atuação impressionante do elenco (com destaque para o Harrison Ford e o Rutger Hauer, dono do monólogo icônico e improvisado no final do filme), não é a toa que Blade Runner é visto como um enorme clássico do cinema e da ficção científica. Ainda assim, como todo filme antigo, tem aquelas coisinhas que não passariam tão facilmente pelo público de hoje em dia; a principal das quais sendo uma cena entre Deckard e Rachael, em que o consentimento é um pouquinho menos que explícito…
BLADE RUNNER 2049 ★★★★★ (como filme) e ★★★★ (como adaptação)
Não é força de expressão quando eu te digo que assisti ao filme inteiro boquiaberta. Que coisa mais linda! Esse aqui se passa 30 anos depois do filme anterior – ou do livro – e gira em torno de um policial, K, que acaba desenterrando umas coisas antigas que o levam em busca de uma criança cujo nascimento é geneticamente impossível – pelo menos no papel.
Eu não consigo nem começar a listar tudo que tanto me agrada nesse filme. Ele pega as melhores qualidades do primeiro e as soma à maioria das coisas que faltaram ali. O visual do filme é incomparável e é impossível enfatizar isso o suficiente. Cada cena, cada pedacinho deveria ser fotografado e pendurado num museu. Isso é maravilhosamente complementado por uma trilha sonora mais que bem pensada, uma apresentação interessante da história e atuações memoráveis. Os novos personagens são introduzidos do melhor jeito possível, adicionando à história sem desfocar do objetivo original. Aqui eu quero dar um destaque à Joi, personagem da Ana de Armas, que cumpre sua função (literalmente) com muita graça, e ao personagem do Jared Leto, Wallace, que consegue ser perturbador na medida certa.
Outra coisa que me encantou em 2049 – tanto como filme quanto como adaptação – foi ele ter resgatado aquelas indagações, a suspeita com a qual eu li o livro. Durante as quase três horas de filme (eu sei, é muita coisa), duvidei da identidade e natureza de K, questionei a autenticidade dos sentimentos de Joi, as motivações da polícia e até a história em si. Em vários momentos, eu tive certeza do que ia acontecer, ou do que estava acontecendo, e no fim estava errada — acho que a atuação do Ryan Gosling contribuiu bastante para isso.
Para completar, eu gosto de como esse filme foi além do “fan service”. Com isso, quero dizer que o filme não se sustenta só na nostalgia dos muitos que adoram o primeiro – Harrison Ford não dá as caras só por aparecer, as tecnologias clássicas do primeiro não são revisitadas sem propósito e o filme não tenta “copiar” o arco do primeiro. A individualidade do filme é tanta que até alguns pontos-chaves do universo são mudados – a companhia que fabrica os androides, por exemplo. De verdade, aqui só fizeram falta o Mercerismo e aquela importância toda dedicada aos animais autênticos.
***
Tendo dito tudo isso, as três obras valem a pena, cada uma por motivos diferentes. No entanto, elas não são interdependentes de maneira alguma e, fora alguns mínimos detalhes que são muito fáceis de pegar pelo contexto, seu aproveitamento do filme não vai ser prejudicado se você pular direto para o de Dennis Villeneuve (2049). Francamente, eu não te julgaria. Mas, se ainda sobrar um tempo depois das três horas de filme, eu realmente daria uma chance para o livro, que vai muito além. E, só pra constar, na minha opinião, os androides sonham sim com ovelhas elétricas.