AMÉLIE

★★★★★ 

FRASES:

“Privada do contato com outras crianças, dividida entre a agitação da mãe e a distância do pai… Amélie encontra refúgio no mundo que inventou”

“O tempo não mudou nada. Amélie continua se refugiando na solidão. Diverte-se com perguntas idiotas sobre o mundo…”

“Sem você, as emoções de hoje seriam a pele morta das emoções do passado.”

“Então, minha querida Amélie, você não tem ossos de vidro. Pode suportar os baques da vida. Se deixar passar essa chance, então, com o tempo, seu coração ficará tão seco e quebradiço quanto meu esqueleto.”

“O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” — pensa num título digno de sessão da tarde! Mas eu não vou começar essa resenha criticando esse tipo de tosquice, Que fique claro que só quem pode reclamar de Amélie (a alcunha exclusiva aos íntimos) é quem faz parte do peculiar grupo de apaixonados pela obra. E me orgulho ao dizer que, nesse ano, me tornei mais um membro dele!

Às exatas 14 horas, 21 minutos e 37 segundos do dia 30 de Março de 2021, eu assistia a Amélie pela primeira vez, e já me encantava com a beleza e sutileza do filme. É inegável que, para qualquer desavisado, o filme do Jean-Pierre Jeunet pode parecer bastante estranho. Regado de narrações inusitadas, quebras da quarta parede, sentidos camuflados e símbolos, a forma como é contada a história da Amélie é definitivamente inovadora. Se levarmos em consideração o lançamento da produção bem no começo deste século, não é errado chegar à conclusão de que Jean-Pierre arriscou alto! Mas não é que essa foi a aposta mais linda que eu já vi?

O risco não está exatamente no enredo da história, que não é revolucionário ou arrebatador de paradigmas. Claro, nem por isso a história perde sua graça — em ambos os sentidos da palavra –, mas o que eu quero dizer é que a novidade não está aqui. Amélie, uma pequena garota francesa, sente a ausência de uma estrutura familiar, contando com uma mãe rígida e um pai distante. A garota cresce isolada do restante da sociedade e, imersa nessa solidão, encontra refúgio no mundo de sua cabeça. A menina, interpretada pela icônica Audrey Tautou, salpica nos brutais acontecimentos de sua vida a imaginação e sua fascinante inocência, o que confere à primeira parte do filme (e a seus flashbacks) o vínculo e caracterização que nos atrelam intimamente à personagem. 

Durante a história, acompanhamos o gradativo progresso da protagonista ao perceber o mundo que a circunda e todas as oportunidades que ele oferece. Depois de uma inusitada — e muito cinematográfica — descoberta, Amélie se dá conta do impacto que suas ações podem ter na vida real, e, pela primeira vez, passa a assumir papel principal em suas relações sociais, provocando rearranjos e mudanças. Seu enxuto círculo de convivência, constituído de seu pai, seus colegas de trabalho, e daqueles cujo contato acaba se tornando parte da simples rotina da protagonista, é afetado pelas minúcias da personagem, e Amélie, aos poucos, encontra seu lugar em meio a toda aquela confusão. 

E aí chega a nossa primeira parada. A partir do ponto em que nossa amiga decide sair da “caverna”, somos apresentados a esses marcantes integrantes da vidinha da jovem. Fazendo o melhor uso possível do narrador onisciente, acontece sua caracterização. Sutis, singelos e individuais, são feitos breves relatos sobre os gostos, costumes e pequenos prazeres de cada um dos personagens, que contemplam suas tramas individuais e contam com uma brutal delicadeza. Esses pequenos excertos encaixam-se com maestria nos temas, objetivos e no estilo da narrativa, claramente dizendo muito sobre seus respectivos personagens. 

A exposição de singularidades e dos pequenos, mas significativos, momentos às vidas de cada personagem é responsável por boa parte do viço escancarado na história, mas é claro que ainda há muito disso que se deve à pessoa que é Amélie. A infância da menina justifica sua pessoa introspectiva, inocente e observadora, servindo como alicerce da partida de uma trama tão afável e significativa. Porque Amélie é assim, é possível que o telespectador note os detalhes detectados por seu ponto de vista, e, assim, se envolve no enredo que aborda temas importantes e muito bem representados. 

Dentre esses temas, é infalível a abordagem acerca da imprevisibilidade da vida — e cuidado, porque lá vai spoiler! Quando a pequena Amélie e sua mãe saem de uma catedral em Paris, uma turista se joga da torre do edifício, fatalmente atingindo a mãe. Assim, de modo completamente abrupto, num instante de segundo, a garota dá adeus à única pessoa em que poderia se apoiar. É claro, se interpretarmos a simbólica disso e entendermos que a vida é, sim, muito imprevisível — e que tudo pode acontecer a qualquer momento –, se torna perceptível a compatibilidade da conclusão à mensagem principal da obra. Os pequenos momentos, a coragem e a ação correta não são retratados como um fim, mas, sim, como uma ação diária que é parte da descoberta da verdadeira felicidade por parte de Amélie — para ela, essa felicidade tem nome e endereço, mas essa aventura da personagem é tão encantadora que merece ser vista nas telinhas.

  Se Amélie já é um filme lindo do ponto de vista de seu enredo, de suas ferramentas de caracterização e narração, quando o assunto é estética, é certamente impossível contemplar todo o esplendor que se adequa perfeitamente ao estilo narrativo. Tendo como uma de suas principais qualidades a sutileza e a beleza nos detalhes, a fotografia e o uso de cores no longa é daqueles que a gente precisa analisar de perto. A manifestação da inocência e pureza na protagonista é acentuada pelos tons de vermelho e verde no ambiente, que demonstram sua graciosidade e amabilidade, mas ainda assim manifestam a personalidade de Amélie. Num exemplo de arranjo cromático, a dupla rubro-verde concilia a identidade de Amélie e o novo mundo descoberto, assim, nota-se todo o equilíbrio que se poderia almejar à obra. 

É ainda evidente o filtro mais amarelado conferido à cinegrafia do filme, que imediatamente traz a impressão de aconchego e otimismo. Vivendo na charmosa Montmartre, Amélie leva uma vida delicada, bela e poética: não há cor melhor que o amarelo para aproximar todas essas mensagens. A identidade de Amélie, suas descobertas e a feliz conclusão da trama devem muito — senão tudo — à sua associação estética, que nos permite, assim como Amélie, ter uma visão poética e cheia de iniciativa frente à vida. 

Desse modo, fica até difícil colocar aqui tudo o que é Amélie: essa visão poética, o sutil desenvolvimento dos eventos, a singela caracterização, o humor e tons tão particulares à obra… A trilha sonora, as cores, os filtros — tão alinhados às intenções do longa! As visões de vida, a beleza que é ver o desenvolvimento de personagens tão especiais… Sinceramente, se até agora não te convenci: só assista O Fabuloso Destino de Amélie. Eu juro que arco com os resultados (maravilhosos) disso na sua vida.   

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