Uma vida míope
Na sala de espera, bem no alto e à esquerda, tinha uma televisãozinha. Aconteceu há uns meses, essa história. Eu apertava meus olhinhos, tentando entender se os hieróglifos compunham meu nome, irritada. Por sorte, me chamaram em voz alta, e assim eu fui, cambaleando, até a sala que mudaria minha vida. Saí de lá com uma nova prescrição de miopia que, para mim, era um bilhete para o mundo real. Não me entendam mal, eu nunca achei que enxergava direito, mas nunca imaginei que o meu mundo fosse assim tão distorcido. Já saí da consulta de lente e não a tirei desde então. Que mundo lindo, esse em que vocês vivem! Os carros têm mini etiquetinhas que, às vezes, parecem palavrões. As ruas são feitas de mil pedrinhas grudadas juntas. Os troncos de árvores são riscadinhos… Eu passei os últimos meses mesmerizada com a minuciosidade do normal. Mas hoje eu senti falta da minha miopia.
Acontece que eu sempre achei que só via uma projeção curta demais do mundo, e nem pensei nos privilégios de enxergar o contexto todo que as pinceladinhas do dia a dia compõem. Sem ver as pedrinhas do cimento, eu só achava que a rua brilhava. E era tão legal vê-la cintilar conforme o carro passava! Eu via romances em vez de letras e reclamava, achando que não sabia toda a história. Mas o melhor de tudo eram as pessoas. Eu entendo que elas não mudaram, elas sempre foram desse jeito lindo, complicado e minucioso. E é um privilégio poder enxergar isso melhor agora. Ainda assim, é triste perder a simplicidade. Nesse meu mundo sem detalhes, eu enxergava os maiores e mais bonitos sorrisos, mas não alcançava as rugas que os contornam. E os choros, ah, os choros… Eu só via aqueles olhinhos brilhantes, cheios d’água e de poesia, mas nunca tinha visto lágrimas ou entendido o quanto elas são tristes, cortando as mais vermelhas das bochechas.
Por isso, por meio desta, venho comunicá-los: a vida dos míopes é linda e, mesmo que irreal, não estou pronta para deixá-la para trás. Então, volto amanhã ao meu oftalmologista, devolvo minhas lentes e recupero os bons e velhos óculos, que posso tirar a hora que eu quiser.