Imaculado (para se esvair, remanescente)
Preâmbulo
Esta não é a melhor história que já escrevi. Nem é a mais bela, nem a melhor escrita. Não tem senso crítico; se livra do discernimento de que eu nunca abro mão.
Ela nasceu e viveu um tempão em mim, já quase comemora seus dois meses de existência. Às vezes, quero ser sua única dona.
Cresceu a partir de uma conversa genuína, cuidadosa, daquelas a que a gente se apega. Esta é uma história sobre o que há de mais verdadeiro, sobre o que se descobre sentindo, sobre tudo que pode existir de real.
Mas é sobre o lugar intocável onde tudo isso se deposita quando, num passo inacreditável, para de existir.
É uma história feliz, de alguém que admira tudo o que o amor pode oferecer. É a promessa de manter, reservada, segura, imaculada, a lembrança do que um dia já foi uma linda verdade. É o lugar onde tudo o que não aconteceu se deposita.
Nunca gostei das metalinguagens. Parecem-me fáceis demais. Mas essa história rompe com muito do meu orgulho.
Definitivamente, não é a minha melhor história. Mas é a mais vulnerável, a mais verdadeira. A que mais me aproxima da beleza que vejo em tudo…
IMACULADO para se esvair, remanescente
Ontem, ouvi que quando um amor acaba é necessário algum tempo até que o que ele foi se desprenda do fato de que ele não é mais. Aí, as memórias são guardadas por quem viveu algo lindo, e, por um lapso que seja, nele acreditou. Esses são os exemplares de beleza e comoção que estiveram comigo e me adornaram, sem permissão ou finalismo, quando eu pensei ser sua.
Que se torne imóvel a lembrança de te ver de longe e imaginar nossa vida. Ela deve estabilizar a admiração do tempo em que você apareceu, me passou, e aprendeu a ouvir — cético –, o meu discurso. Você fazia aniversário: que os aniversários te permaneçam intocados.
Sua altura, seu terno e seu jeito de falar, descobertos por mim no dia em que te reconheci no púlpito, vão se depositar, todos, na caixa das coisas específicas, místicas e sempre tão especiais. Conservadas em vácuos fantasiosos de galáxias inventadas que eu uma vez prometi te devolver — mas que sempre te pertenceram, sempre foram só suas.
Há de se dissolver o êxtase de quando tudo ensaiava ser o que foi. Que nunca se corrompa a primeira conversa e seu prolongamento scorsesiano. Que o aperto daquelas mãos, desconcertadas e inocentes, seja sempre puro — já não foi. Que os pensamentos de museu, que os elogios disfarçados, que as coincidências sejam reminescência. Que o calor, a excitação, a doçura do encontro se reserve àquilo que, de alguma forma, descobrimos ali.
Peço mais uma, e só mais uma lembrança, pela última vez, à minha ignorância, que me encaminhou por aqueles dias, os dias de gradativa revelação. Que a esperança, melancólica ou fantasiosa, jamais me escape. Que o que foi nosso não me desaproprie do amor, dos sentimentos mais cheios do mundo. Que eu me lembre de que um afiado fragmento seu já me preencheu inteira. Que eu volte, sempre, àqueles terrenos inexplorados.
Porque eu vi entrarem o caos e a beleza em todas as coisas, espero seguir com a coragem que antes me parecia avassaladora. Que eu jamais me esqueça de que o amor — qualquer vislumbre dele — vale a pena.
Seja reservado o primeiro beijo, lento, cuidadoso, na verdade de seu momento. Que suas mãos, vagando incertas por mim, sejam a descoberta eterna, a busca por qualquer recurso. Que tudo nosso seja aquela lagarta listrada, excêntrica, especial, insuficiente. Que eu aprenda com a limitação vocabular.
Garanto conservar todos os beijos mais importantes. Que as mãos dadas vivam em mim no espaço vazio que tantos filmes não vistos deixaram. Que eu me apegue a quando, cega, te tive para mim. Nas ruas históricas, tão minhas, por que passamos. No seu cheiro, tão seu, bem mais que seu perfume.
E, se tudo isso, algum dia, for mais do que eu pense em sustentar, que me reste a única lembrança de te olhar, depois de um beijinho. Sentir todas as coisas do mundo, duvidar, achar que eu te inventei. Ter medo de tudo evaporar num instante. Evaporou. Condenso tudo, cuidadosa, na redoma do que vai ser para sempre o que foi.