Uma vida (extra)ordinária

Na antiguidade ateniense, o tempo ocioso e de contemplação era essencial para o exercício pleno da cidadania democrática, afinal, era necessário entender a sociedade para nela atuar e, para tanto, era preciso vivenciá-la. No entanto, em meio a desenvolvimentos tecnológicos e linhas de produção, o frenesi humano por produtividade suprimiu o valor de uma vida significativa, deixando a contemplação reservada a artistas e loucos, marginalizados pela sociedade produtiva. Mas, como argumenta o clássico romântico “O Retrato de Dorian Gray”, “a vida é uma coisa mais incrível que a Arte”, e contemplá-la propriamente é, não um privilégio, mas sim uma necessidade básica.

Monteiro Lobato, em sua obra “‘Negrinha”, conta a história de uma menina que sobrevivia pelos cantos, sujeita a uma indignidade sub-humana, até que, em um dia, pôde brincar de boneca: viver de verdade como uma criança. Ao voltar à rotina, a garota viu que, tendo vivido, sobreviver era impossível, e morreu. O homem hoje, sem nunca ter visto uma boneca, se contenta com a sobrevivência e julga a poesia da vida um acessório inconveniente. Contudo, Dorian Gray elucida que “vivemos numa era em que coisas desnecessárias são nossas únicas necessidades”, e a contemplação é imprescindível para a vivência plena da existência.

Apesar disso, é necessário reconhecer que os moldes atenienses de empirismo são, no mundo atual, inviáveis, utópicos e obsoletos. É impossível condenar a produtividade, porque o homem depende dos seus frutos para sobreviver; não se pode viver sem sobreviver – e a recíproca é verdadeira. O filme de 2013 “‘Uma questão de tempo” entende esse fato e defende que o segredo para a felicidade é viver todo dia duas vezes, deixando espaço para a contemplação do normal.

Sendo assim, fica claro que a solução para o homem que sobrevive a um dia a dia insosso não é parar para contemplar o coaxar dos sapos num parnasianismo digno de Olavo Bilac, mas entender que a própria existência, produtiva e frenética, é, em si, poética e digna de contemplação. Aos moldes de Dorian Gray, é preciso que o homem faça da vida sua arte, dos dias seus sonetos e vivencie a ordinariedade da vida como uma poesia que a faz valer a pena; afinal, é sobre viver, e não sobreviver.

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